H. NORONHA GALVÃO – ALEXANDRE PALMA
Insere-se este número da COMMUNIO na série dedicada às notas que definem a Igreja como “una, santa, católica e apostólica”, segundo professamos no Credo. Após termos analisado a apostolicidade (2011/4), a catolicidade (2012/4) e a santidade (2013/4), reflectimos agora sobre a unidade da Igreja. Um tema também ele paradoxal pois nos confronta, por um lado, com um dado da Igreja que, sem deixar de ser humano, é sobretudo dom de Deus, e, por outro lado, com a realidade histórica que a parece contradizer pela manifesta dificuldade concreta dos cristãos em se manterem unidos. Mas perante as divisões que se foram criando ao longo do tempo, a Igreja de hoje está consciente da sua obrigação de procurar novos caminhos de união. Não como um projecto a realizar pelas simples forças humanas, mas como graça de Deus pela qual se há-de rezar e para a qual a Igreja se deve tornar disponível.
Em primeiro lugar surge a pergunta acerca do tipo de unidade de que se trata. José Maria da Silva Rosa, em (Re)pensar a unidade, leva-nos a olhar de novo uma questão humana de sempre: a da relação entre o Uno e o Múltiplo. Fá-lo, num primeiro momento, revisitando a antiga sabedoria dos filósofos pré-socráticos, estação incontornável da aproximação ocidental a este tema, pois aí se anteciparam questões que animaram épocas sucessivas. De seguida, esse (re)pensar concentra-se no universo religioso, sobretudo na forma como monoteísmo e politeísmo se foram articulando e transformando, para por fim se aproximar do tema da unidade vivida e entendida na esfera propriamente cristã. Aqui o próprio pensamento da unidade se repensa a si próprio para reconhecer, na esteira de Agostinho, que é no amor (não no pensamento) que uno e múltiplo se reconciliam.
Mário Sousa, com o seu artigo A unidade no quarto Evangelho, oferece--nos um itinerário biblicamente documentado que ajuda a perceber como a unidade é um tema central desse Evangelho. Explorando o simbolismo de alguns episódios joânicos, o autor mostra como a unidade de todo o mistério de Cristo vai sendo sublinhada pelo evangelista. A acentuação deste motivo, fundado no laço que une o Pai e o Filho, respondia aos desafios com que as jovens comunidades joânicas estavam confrontadas. Perante tais circunstâncias a fidelidade ao Cristo uno, ao Cristo inteiro, torna-se o referente da fidelidade à integridade do Evangelho e da salvação n’Ele, experimentada e continuada na Igreja.
D. José Manuel Cordeiro, no seu texto A liturgia, sacramento de unidade, mostra-nos como na acção litúrgica se manifesta e se constrói a unidade de todo o Corpo eclesial. Esta unidade é mesmo, segundo a tradição cristã, um dos frutos da liturgia, tal como o autor evidencia a partir de textos litúrgicos e referências patrísticas. Na liturgia a Igreja é um só corpo que celebra, um só corpo que reza ao Deus uno (“ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo”) e que suplica a “unidade e a paz” prometidas por Cristo. Um tema que é retomado por Mons. Éric de Moulins-Beaufort, em “Muitos, somos um só corpo”. As dimensões eucarísticas da unidade segundo Henri de Lubac. Recorda como este grande teólogo francês parte do comentário ao versículo da 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios 10,17: “Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão”, para chegar à sua célebre afirmação: “A Eucaristia faz a Igreja, a Igreja faz a Eucaristia”. O Autor do artigo explica de que modo, quer na Igreja, quer na Eucaristia, se trata sempre do corpo de Cristo: “o Corpo real, verdadeiro, efectivo, definitivo, aquele que resplandecerá na glória para a eternidade, anunciado pelo seu corpo histórico, quanto à Igreja; e o Corpo ‘no mistério’, ‘místico’ portanto, o Corpo celebrado, já contemplado e dado e tocado, esse Corpo incorporando os crentes que o recebem, quanto à Eucaristia.” Só deste modo se acede a uma unidade que respeite e concilie verdadeiramente as diferenças, o que é impossível sem a mediação de Cristo.
Mons. Peter Henrici, a partir da sua experiência como Bispo auxiliar na Suíça, oferece-nos uma oportuna reflexão em Conferências episcopais. Contributo promissor para a unidade da Igreja. Nota que algumas das Conferências episcopais actualmente existentes são anteriores ao Concílio Vaticano II, tendo surgido a partir de necessidades concretas sentidas pelas Igrejas particulares em alguns países ou regiões. O Concílio reconheceu como eram importantes para garantir e aprofundar a unidade entre as Igrejas particulares, e o Sínodo extraordinário dos Bispos em 1985, vinte anos após o termo do Vaticano II, apresentou o affectus collegialis no exercício do ministério episcopal como um importante factor da eclesiologia de comunhão, reconhecida como central na doutrina conciliar. Nessa linha acentua a importância das Conferências Episcopais para a vivência e realização da colegialidade. O Papa Francisco tem dado sinais no sentido de um fortalecimento das suas competências, em favor de um governo mais descentralizado da Igreja. Em toda esta evolução é inegável a importância de uma visão eclesial em que a unidade se deve harmonizar com a diversidade. Uma nota de Maria Branco, acrescentada ao artigo de Peter Henrici, ajuda-nos a situar esta problemática no panorama da Igreja em Portugal.
O moderno movimento ecuménico veio dar um novo dinamismo ao processo de aproximação das Igrejas, que se separaram devido a diversas circunstâncias históricas. Com a competência que lhe é própria como Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, o Cardeal Kurt Koch, no seu artigo Unidade da Igreja numa perspectiva ecuménica, apresenta-nos uma visão de conjunto da situação histórica e actual. Apesar de alguns entendimentos parciais, seria necessário, antes de tudo, para alcançar de novo a unidade perdida um consenso sobre o próprio conceito de ecumenismo, o que ainda não se conseguiu. Do lado evangélico defende-se uma “comunidade das Igrejas” (Acordo de Leuenberg), em vez do objectivo de se alcançar uma “comunidade da fé, dos sacramentos, do ministério” (Bento XVI). Por seu lado, as Igrejas ortodoxas entendem-se como Igrejas autocéfalas e autónomas. Na visão católica, a Igreja deve comparar-se a uma elipse com os dois focos: Igrejas locais e Igreja universal. Um ecumenismo com base cristológica só pode ser uma “participação na oração sacerdotal de Jesus” (W. Kasper), o que supõe um ecumenismo espiritual que reconheça o primado da oração. Só assim a Igreja pode aparecer ao mundo como ícone do mistério trinitário de Deus e tornar-se credível na sua evangelização.
Um caso exemplar de empenhamento ecuménico é-nos apresentado por Aldino Cazzago em Paulo VI, obreiro da unidade entre as Igrejas. Foi permanente a preocupação manifestada por este Papa de esclarecer a função fundamental do ministério petrino como serviço à garantia e à promoção da unidade de toda a Igreja, também na sua dimensão ecuménica. Não deixava, porém, de estar consciente de que o papado para muitos Irmãos separados constitui, pelo contrário, um obstáculo a essa unidade. Daí a sua tentativa para superar essa situação, nomeadamente através de “gestos proféticos”, como o encontro, na Terra Santa, com o patriarca Atenágoras e, mais tarde, o beijo aos pés do metropolita Melitão. Decisiva fora anteriormente, na véspera do encerramento do Concílio Vaticano II, a comum abolição por Paulo VI e Atenágoras das excomunhões que dividiam as duas Igrejas.
Publica-se ainda o depoimento do Irmão Alois, actual Prior de Taizé, sobre o fundador desta Comunidade Ecuménica, o Irmão Roger, assassinado em 16 de Agosto de 2005, quando se encontrava na igreja durante um tempo de oração. Para ele, só a fé no Deus que ama incondicionalmente pode aproximar de novo as Igrejas. De Alexandre Bonito, Protopresbítero da Igreja Ortodoxa, podemos ler um testemunho sobre a unidade da Igreja, vista como “unidade com Cristo no Espírito Santo”, unidade que é bem expressa pelo termo russo sobornost, designando a comunidade-comunhão que liga o corpo eclesial com os membros individuais. Uma unidade que se estende a toda a humanidade, pois a Igreja é chamada a preservar o sentido do mistério da presença de Deus no homem, que os próprios ritos se destinam a exprimir e a irradiar. No que respeita à Igreja católica, Manuel Barbosa, Director do Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, mostra-nos como a preparação do Sínodo dos Bispos que o Papa Francisco convocou para reflectir sobre a Família, nos convida a tomar consciência da importância do contributo de toda a comunidade eclesial para se responder aos desafios actuais do mundo em que vivemos.
Na secção Perspectivas, publicamos de Hans Maier o importante artigo de Religião e perseguição religiosa, uma temática de grande actualidade devido a casos dramáticos conhecidos pela comunicação social. A “liberdade de mudar de religião”, garantida na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU 1948), tornou-se posteriormente letra morta. Donde a necessidade de lutar pela sua reabilitação.
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