ANTÓNIO FIDALGO – FAUSTINO CALDAS FERREIRA
O tema da justiça é aquele que, hoje em dia, mais carece de reflexão e de esclarecimento. A ordem da justiça é uma ordem a fazer e a refazer constantemente. A lógica da vida social não se ajusta fácil e espontaneamente à racionalidade especulativa nem aos esquemas abstractos permanentes ou definitivos. A realidade do conflito está sempre presente no mundo que a justiça quer regular. E tudo isto porque não há na história humana uma coincidência harmoniosa e perfeita entre a ordem especulativa da compreensão dos valores e a ordem real da acção. A dialéctica entre estas duas ordens é a realidade mais real do ser humano e é, através dela, que ele projecta o seu futuro. A história do ser humano e a história dos diversos países e povos estão cheias de desequilíbrios, assimetrias, desigualdades e injustiças. Até agora, tem-se conseguido esquecer uns e esconder outras no meio de múltiplas ilusões. A virtude moral da justiça, de que nos falam as Bem-aventuranças, tem como afazer principal libertar o ser humano de todas estas ilusões e facilitar-lhe o acto do seu despojamento, a fim de que possa libertar-se mais facilmente da consciência da “bela alma desventurada” que o consome interiormente. Um dos fenómenos mais significativos da nossa época é que o homem actual não suporta a ideia de ter de utilizar os seus próprios meios, criados por si, para escamotear os seus insucessos no mundo da acção social. A consciência humana adquiriu hoje, no plano histórico, a capacidade de experimentar o sentido da culpa, quando confrontado com a sua actuação. O balanço da sua consciência entre o que é e aquilo que já poderia e deveria ser na realidade concreta, começou a desenvolver um programa que poderá dar origem a um progresso verdadeiramente humano, difícil mas possível. Em síntese, a humanidade sente-se totalmente incapaz de realizar a verdadeira justiça e de criar uma sã e fraterna convivência onde todos sejam felizes. Impõe-se a intervenção de Deus na história humana para se poder inaugurar uma “justiça nova”, uma justiça diferente, à imagem de Deus. É esse o sentido dos artigos de H. U. von Balthasar, As bem-aventuranças e a dignidade humana e de João Lourenço, O desafio bíblico à felicidade em Mt 5,6. Diante da injustiça, as palavras não contam, somente importam os actos. Sendo assim, emerge imediatamente na mente dos cristãos uma questão importante: que meios escolher para realizar a justiça e que meios seleccionar para combater as injustiças? O artigo A fome e sede de justiça do cristão pode indicar um caminho. Não basta que todos tenham igualdade de oportunidades para que haja justiça. A acepção formalista de justiça ignora a situação concreta dos que a exercem e dos que dela têm fome. A justiça é sempre substantiva. Veja-se o trabalho de Sarsfield Cabral, Rawls ou a justiça na sociedade liberal. A justiça é uma área que toca de perto a condição humana e que envolve, da mesma forma, cristãos e não cristãos, crentes ou ateus, indiferentes e convictos. Não nos referimos aqui, como é evidente, à justiça legal dos tribunais, sejam eles civis ou eclesiásticos, mas à justiça como virtude cardeal. No entanto, os tribunais podem ser instrumentos úteis para a realização da justiça. É isso mesmo que nos diz Saturino Gomes no seu trabalho Administração da Justiça nos tribunais eclesiásticos. O discurso sobre a justiça é, certamente, um discurso que diz respeito às pessoas, que devem ser justas; mas é também um discurso que visa as estruturas e instituições que, estando ao serviço das pessoas, devem ser igualmente justas. O apelo da justiça impõe a estas a necessidade de profundas mudanças e correcções. Roque Amaro é bem sensível a esta realidade no seu artigo Desenvolvimento e injustiça estrutural. O problema das relações Norte-Sul é o grande problema que a humanidade deve tentar resolver nos tempos mais próximos; é o grande desafio dentro do qual se colocam outros tantos desafios, por exemplo, a salvaguarda dos valores étnicos, culturais e religiosos das minorias. É interessante, sob este aspecto, o que nos diz J. B. Ballong-Wen-Mewuda. Tal como outrora, a maioria da humanidade vive actualmente em situações de sofrimento, de angústia, de desânimo e de insegurança. Assim no-lo referem os testemunhos de D. José Rodrigues, Bispo de Juazeiro, no Brasil, e José Carlos de Sousa. E muitas vezes não se sabe diante de quem reclamar os próprios direitos, testemunho de Maria Mathias Lobão.
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