MARIA LUÍSA FALCÃO
Já não estamos em época de cristandade, mas vivemos numa Igreja cujas fronteiras nem sempre são facilmente identificáveis, numa Igreja de cristãos que em muitos casos se interrogam, têm dúvidas e procuram razões para crer. Vivemos igualmente na era da comunicação. Quem foi em demanda e encontrou essas razões e delas deixou o seu testemunho escrito pode ajudar a espalhar a luz que ilumina os que porventura se encontram nas encruzilhadas da vida e da fé. A descida do Pentecostes veio incendiar o mundo com suas línguas de fogo e com a graça multiplicada das passagens de testemunho. E se Deus fala em muitas línguas, certamente o faz também na língua da literatura. Não foi a Criação operada pelo Logos?
Fundamentalmente para tentar saber um pouco melhor como Deus se encontra presente na palavra da literatura, é que nasceu a ideia deste número da COMMUNIO.
No campo da literatura se dá o processo de difusão das inovações culturais, servindo a literatura de mediadora destas para o homem comum, e dando-se aí também o confronto entre valores religiosos e cultura secularizada. Este o tema do artigo de Jorge Coutinho que nos oferece uma panorâmica geral, no tempo de hoje, da expressão ou silêncio de Deus na literatura. De língua portuguesa, apresentamos dois poetas distanciados no tempo e também nos percursos que seguiram no domínio religioso. Luís de Camões de quem se publica uma elegia, provavelmente composta ainda nos seus tempos de estudante de Coimbra, e onde vislumbramos um crente que dá graças pelo amor de Deus. Em seguida, Manuel António Ribeiro apresenta a poesia de Ruy Belo. Como diz o autor, “estamos perante uma procura de Deus por parte de uma consciência lúcida… que se exprime de modo por vezes até agnóstico”, mas que deixa perceber que mesmo esta sua faceta está sempre aberta à inquietação metafísica.
De Hans Urs von Balthasar, profundo conhecedor da teologia e da literatura, publicamos parte do posfácio que juntou à sua tradução alemã da peça teatral de Paul Claudel Le Soulier de Satin. Localizada a cena na Espanha barroca, ela permite a von Balthasar uma redescoberta da re lação autêntica entre beleza teológica e beleza do mundo, e também uma nova atenção à Palavra de Deus pelo vector da beleza da arte.
Maria Luísa Falcão fala-nos do mundo ficcional criado por C.S. Lewis, em que a presença do Deus pessoal, embora não-dita, permanece incontornável. Do mesmo modo, M. Leonor Telles fala-nos de J.R.R. Tolkien, em particular da sua obra O Senhor dos Anéis. No sec. XX, este grande escritor propõe-nos o género literário épico, onde o regresso ao Belo e à Verdade se dá através do recurso ao mito. O mito é símbolo que remete para o significado último que o homem é convidado a reconhecer e interpretar; é meio para dar resposta às grandes questões como a origem do homem, o bem, o mal, o amor. O Senhor dos Anéis está assim bem longe de ser mera história de fantasia para jovens. Desenvolve, antes, uma teologia da história que lembra a concepção agostiniana das duas cidades.
Com demasiado simplismo, associamos por vezes a literatura de inspiração cristã apenas ao mundo ocidental (incluindo o continente americano), e esquecemos que fora deste espaço também surgiram escritores que fazem dos valores cristãos fundamento das suas obras. Ferdinando Castelli recorda-nos um desses nomes, o japonês Shusaku Endo, o qual estrutura a sua obra literária em volta do problema, decisivo para si, do “tormento do estrangeiro”: como pode um japonês tornar-se cristão e permanecer japonês? É possível conciliar cultura japonesa e fé cristã? Estamos perante a questão sempre central da inculturação da fé.
De dois nomes significativos da poesia portuguesa em que a fé religiosa foi profunda fonte de inspiração, Maria de Lourdes Belchior e Sebastião da Gama, dão o seu testemunho, respectivamente José Adriano de Car valho e Maria Alice Botelho Moniz.
A nossa revista não podia deixar de assinalar a beatificação de Fr. Bartolomeu dos Mártires O.P.. Do dominicano José Manuel Fernandes publicamos um texto sobre a vida e obra do arcebispo português, uma das maiores figuras do concílio de Trento. |