HENRIQUE DE NORONHA GALVÃO
Na série dedicada aos mistérios da vida de Jesus, (1) depois do mistério do seu nascimento como incarnação do Filho de Deus, (2) oferece-se à nossa consideração o tempo que antecedeu a sua actuação pública. Tradicionalmente, chama-se a esse período “a vida oculta de Jesus”. Desde logo se pode perguntar: Terá sido esse um tempo perdido? Sobre esta questão reflecte o filósofo Rémi Brague, para chegar à conclusão de que, sendo o cristianismo a revelação de Deus na pessoa de Jesus Cristo, é preciso que esta “se constitua como o faz uma pessoa humana, por meio da […] história pessoal de um acesso à vida adulta.”
É por isso que merecem atenção particular os “evangelhos da infância” em cujo estudo somos guiados pelo exegeta Bruno Maggioni. “O extraordinário, que continuamente surpreende, é que um Filho de Deus tenha vivido durante anos uma vida de modo algum extraordinária.” Que sentido assume a realidade da vida oculta de Jesus, não apenas em contraste com a sua vida pública, mas também em continuidade com ela, explica-nos Karl Kertelge: “Quanto mais o evangelho de Jesus Cristo é especificamente uma proclamação pública, tanto menos lhe falta o motivo do recolhimento e do silêncio.”
Do ponto de vista das consequências que pode e deve ter para a nossa vida, iluminada pela fé, esse dia-a-dia do Messias e Filho de Deus, o teólogo Gisbert Greshake faz uma pormenorizada análise de algumas espiritualidades concretas do sec. XX. Em Nazaré, a Mãe de Jesus conduz-nos, pela sua vocação muito particular, ao seu próprio Filho. No seu coração e no silêncio, como nos expõe Maria Manuela de Carvalho, ela meditava no mistériode Jesus, encontrando desta maneira ela própria o seu lugar nesse mistério.
Questões com muita actualidade são tratadas por dois biblistas. João Lourenço confronta a situação sócio-política de Israel no tempo de Jesus com a actual. Joaquim Carreira das Neves começa por explicar o que são os agrapha, as sentenças ou ditos de Jesus que conhecemos por vias diferentes dos evangelhos. Mas uma procura acrítica desses ditos de Jesus pode descarrilar em toda a sorte de arbitrariedades, tal como hoje ainda acontece com publicações pseudo-científicas que tentam assim fazer passar as suas ideias sectárias. Na vida oculta de Jesus podem encontrar ânimo e coragem aqueles cristãos que, ainda hoje, se têm de esconder para poderem viver com autenticidade a sua fé. O bispo emérito de Macau, D. Arquimínio Rodrigues da Costa, apresenta-nos a situação dos católicos na China actual. Da fecundidade de todo um testemunho de vida cristã, vivida de modo simples e quotidiano, nos fala a Irmãzinha de Jesus, Aida Maria, tornando-nos acessíveis as potencialidades da espiritualidade do Padre Charles de Foucauld.
Na secção Perspectivas, três tópicos merecem a nossa atenção. Através de Elio Guerriero ficamos a conhecer a importância de Reinhold Schneider (3) para se entender de que forma se cruzam, ao longo da história, a consciência da Europa e o drama cristão. No campo da música, o diálogo entre a obra de Mauricio Kagel e Johann Sebastian Bach, analisado por Alfredo Teixeira, introduz-nos num processo criativo singular, paradigmático da pretensão prometeica do ateísmo moderno. Na esteira de Nietzsche, evidencia-se esse “equívoco trágico” (Henri de Lubac [4]) do humanismo ateu, para o qual Deus deixou de constituir o horizonte necessário e a salvaguarda da grandeza e transcendência humanas, para ser reduzido a uma sigla da auto-suficiência de quem confia cegamente no humano. Neste sentido, a teologia antropológica de Karl Rahner pode ser lida como resposta profunda às inquietações do espírito moderno. Na data do centenário do seu nascimento, J. E. Borges de Pinho ajuda-nos a conhecer melhor essa figura ímpar da teologia do sec. XX.
1 Cf. Communio nº 2 de 2002 (ano XIX): Os Mistérios da Vida de Jesus. 2 Cf. Communio nº 1 de 2003 (ano XX): O Mistério da Incarnação. 3 Cf. a obra do seu amigo e admirador Hans Urs von BALTHASAR, Nochmals Reinhold Schneider, Einsiedeln: Johannes 1991. 4 Le drame de l’humanisme athé, Paris: Spes 41950; trad. port. O drama do humanismo ateu, Porto: Porto Editora s.d..
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