HENRIQUE DE NORONHA GALVÃO
A série sobre os Mistérios da Vida de Jesus, já apresentada no 2º fascículo de 2002, inicia-se propriamente com este número, dedicado ao Mistério da Incarnação. Termo fortemente expressivo, a carne está no Novo Testamento pelo homem em toda a sua realidade, frágil mas amada por Deus. A tal ponto que, em Maria, se deu esse acontecimento único de o Verbo de Deus se fazer carne, assumir uma real existência humana. O exegeta Rudolf Schnackenburg explica-nos como o prólogo do evangelho de S. João nos coloca perante este Mistério em que o Logos se revela como Deus, e pela sua incarnação vem aos homens como Vida e Luz.
Na linguagem dos Padres da Igreja, dá-se aqui uma “admirável permuta”, em que Deus assume a realidade do homem para que este comungue na própria realidade de Deus. Acontece, assim, o encontro entre a liberdade infinita de Deus e a liberdade finita do homem. Como primeiro lugar desse encontro encontramos o sim de Maria a qual, sendo mulher, se disponibiliza para ser mãe daquele que é Deus: nesse sentido torna-se Theotokos, Mãe de Deus. Jacques Servais introduz-nos na profundidade do mistério inaugurado por este sim. Em Maria, o Verbo enviado pelo Pai torna-se homem pelo Espírito. Um poema de Teilhard de Chardin, citado por Servais, atribui à Virgem Maria o papel expressamente feminino de atrair o Salvador pela sua beleza. É a Pureza de Maria, criada por Deus, que “seduz” o próprio Deus: “Deus para poder sair de Si devia, primeiramente, lançar diante de seus passos um caminho de desejo, espargir à frente d’Ele um perfume de beleza.” O lugar de Maria na Incarnação torna-se mais nítido, se acompanharmos John Henry Newman na sua descoberta, a partir dos Padres da Igreja, dos grandes motivos teológicos em que se foi formulando ao longo do tempo a doutrina sobre a Mãe de Jesus Cristo. A percorrermos esse itinerário nos convida Lutgart Govaert.
O Natal do Verbo de Deus é Mistério também no sentido em que actua na vida dos crentes. Segundo uma terminologia tradicional, Jesus Cristo nasce pela fé no coração dos cristãos, manifestando a fecunda realidade da habitação de Deus no meio de nós, em nós. Por isso, a vida cristã parte sempre já de uma plenitude, a plenitude do dom de Deus. À liberdade humana cumpre ser fiel a esse dom. Diz Paolo Martinelli: “O coração habitado por Deus é aquele em que a presença do Deus Trindade cresce, tornando-o capaz de reconhecer e testemunhar a presença de Cristo em todas as circunstâncias.”
Do Natal concretamente vivido e testemunhado apresentamos duas expressões significativas. Uma literária, dos Autos de Gil Vicente (sec. XV-XVI), analisados e interpretados por Maria Teresa Frazão. Outra que, sendo popular, tem raízes que vão buscar a sua vitalidade a toda uma longa tradição eclesial que nos é recordada. Trata-se da celebração das festas do Natal no Algarve, estudada por José Cunha Duarte.
Um caso de incidência da ideia do Natal na nossa cultura pode ser estudado a partir da filosofia de Michel Henry. Da sua fenomenologia, sobretudo a partir do livro com o título Encarnação, nos fala Florinda Martins. É a memória do natal como “memória da revelação da Vida que em nós se afeiçoa em ver, ouvir, amar. Vida que por nós ama, se emociona, se sensibiliza, se deixa tocar! Vida que assim se nos revela, no abraço do presente, no abraço da natividade!” O cinema, por seu lado, tem-se interessado pela figura de Jesus Cristo. Francisco Perestrelo percorre diversas produções, típicas das correntes romântica, musical e de espectáculo, polémica, e objectiva. É grande o desafio a que este cinema pretende responder, pois o que está em causa é apresentar o homem em que o divino se fez presente. Se é do espectador e da sua fé que depende, em última análise, a possibilidade de reconhecer tal presença, compete ao realizador assegurar a objectividade, respeito e profundidade no tratamento da figura de Jesus Cristo.
Fora do tema, anuncia-se ainda, neste número, o próximo aparecimento de mais um volume das Publicações Communio, com a tradução portuguesa do documento sobre o Diaconado que acaba de ser elaborado pela Comissão Teológica Internacional. |